Quando falamos sobre a culinária brasileira muitos pratos são comuns. A feijoada, o brigadeiro, o churrasco, entre outras receitas fazem parte do que imaginamos como a cozinha típica brasileira.
Muitos também são os discursos sobre a criação de formas de cozinhar, dos pratos e ingredientes. Desde a influência europeia, dos negros vindos de África e dos indígenas, a formação de nossa culinária se mistura, sendo difícil identificar quem criou qual parte de nossa gastronomia. Mas a partir de pesquisas sobre de onde veio cada elemento da cozinha brasileira, podemos identificar como cada forma de se alimentar e cada receita faz parte de relações humanas e de uma história de nosso país.
Acarajé – Para além da escravidão
A contribuição culinária dos povos negros capturados e trazidos do continente africano para o Brasil como escravos é bastante controversa. Nos discursos comuns é possível que se atribua a feijoada como a maior influência da cultura africana para a nossa cozinha, como se o prato fosse a união de todas as etnias. Contudo, de acordo com o pesquisador Carlos Alberto Dória, a feijoada na realidade tem suas raízes na forma de comer e cozinhar dos europeus. Assim, seria um mito dizer que a feijoada, um prato mais cerimonial do que cotidiano, seja influenciado pela culinária africana.
Precisamos evidenciar que o mito da feijoada como o prato brasileiro por excelência nega as consequências da escravidão. Conforme o autor já citado, a criação gastronômica necessita de liberdade. Os homens e mulheres sequestrados de seus países não poderiam acrescentar à nossa culinária sem uma liberdade, sem os recursos necessários para a produção de receitas. Portanto, só podemos falar de contribuições de povos africanos na nossa cozinha após a abolição.
Mais especificamente essa influência se acentua a partir de 1763, quando a sede do vice-reinado foi transferida da cidade de Salvador para o Rio de Janeiro. Nesse momento, os negros que antes trabalhavam servindo ao enorme aparato burocrático na cidade ficaram sem serviços. Assim, as atividades destas pessoas começaram a ser nas ruas de Salvador. Não era incomum ver negros que faziam peças de decoração, joias, consertos e também comidas do gosto popular. Dentre essas comidas de rua, estava o acarajé.
Veja como fazer essa comida histórica (receita de Paloma Jorge Amado):
Receita de Acarajé
Ingredientes:
1 kg de feijão-fradinho
1 kg de cebola (cerca de 5 unidades)
1 cebola com casca para fritura
2 colheres (chá) de sal
2 litros de azeite de dendê para fritar
Sal a gosto
Modo de preparo:
1. Retire a água do feijão hidratado e cubra-os novamente com água. Misture levemente com uma colher, retire as cascas que flutuarem. Mexa de novo e retire mais cascas. Repita o processo mais três vezes e, por fim, escorra bem a água, passando por uma peneira.
2. Descasque e corte as cebolas em pedaços médios (reserve a cebola extra com a casca).
3. Processe em um processador de alimentos uma parte do feijão hidratado com a outra da cebola, até formar uma massa bem leve, com a consistência de uma pasta esponjosa. Coloque em uma tigela a parte processada e realize o procedimento novamente até terminar a quantidade do feijão e a cebola. Misture o sal, aos poucos, na massa.
4. Ao mesmo tempo aqueça o azeite de dendê com uma cebola inteira dentro, em uma panela funda e larga, o que auxilia na manutenção da temperatura ideal para a fritura do acarajé.
5. Torne a massa homogênea ao mistura-la e modele um bolinho com duas colheres, passando de uma para outra. Desta forma a massa ficará com formato ovalado. Apesar de ser difícil realizar a técnica, com um pouco de prática irá conseguir. A dica é pegar um pouco da massa com uma colher e, com a outra, raspar o fundo da primeira. Repita esse processo até a massa ficar ovalada e coloque o bolinho no mesmo momento na panela com o azeite.
6. Frite poucos acarajés por vez, no máximo dois e os vire com frequência para ficarem com a fritura uniforme. Com uma escumadeira pegue os bolinhos e os transfira para um prato com papel-toalha.
7. Sirva-os em seguida, cortado ao meio, recheado de vatapá e molho de camarão seco. Caso prefira, também coloque pimenta ao seu gosto.
Buchada de bode – Os movimentos migratórios pelo Sertão
Uma culinária pouco valorizada quando pensamos em o que caracteriza o Brasil é a sertaneja. Na história brasileira essa população se formou a partir dos ciclos econômicos do país. O sertão é formado por pessoas que estão às margens do ciclo da borracha, do açúcar, café e ouro. Isso porque os sertanejos no período do Brasil colonial estavam em mudança frequente atrás de empregos, sendo como nômades.
Essa particularidade da migração constante dentro do Sertão, especificamente o nordestino, é fundamental para entendermos essa culinária. Pela natureza provisória de suas terras, Carlos Alberto Dória, irá escrever que a escolha destas pessoas era por legumes com ciclo curto de colheita e pequenos animais. Assim, a cozinha sertaneja exigiu uma criatividade para lidar com recursos necessários.
A carne de cabra é um exemplo dessa característica. A criação de cabra passa a ser prestigiada nestas comunidades pois supre diversas necessidades. Leite para as crianças, couro do animal que poderia ser vendido, assim como a alimentação. Enquanto a carne suína era apreciada apenas em momentos festivos, o cabrito, junto com a galinha, era a carne escolhida para o dia a dia. Assim, a culinária com essa carne envolve caldos e ensopados saborosos com legumes como milho e mandioca.
A buchada de bode é tradicional da região nordeste. Apesar disso, sua origem tem influência da culinária portuguesa, a prática de rechear miúdos de cabra. Na realidade brasileira, os recheios recebem temperos e legumes regionais, dando um ar único ao prato.
Vejamos como prepará-lo: ( Receita de Rodrigo Hilbert)
Receita de Buchada de bode
Ingredientes
Vísceras de 1 bode
2 cebolas
2 pimentões
2 tomates
2 colheres de sopa de cominho
Meio maço de hortelã
1 colher de chá de pimenta-do-reino
1 colher de sopa de colorau
Azeite
Sal a gosto
8 dentes de alho
Meio maço de coentro
Agulha e linha – para costurar os travesseirinhos de bucho
Modo de Preparo
1. Corte os miúdos que desejar em cubinhos e transfira os para uma tigela.
2. Corte as cebolas e separe metade na tigela com os miúdos e a outra parte em outra tigela.
3. Faça igualmente com os tomates, os pimentões, o alho, o coentro e a hortelã. Pique e misture uma parte com os miúdos e o resto na tigela com a cebola e reserve.
4. Adicione aos miúdos uma colher uma de pimenta-do-reino, uma de colorau, uma de cominho, sal e mexa bem.
5. Corte o bucho em 6 pequenos pedaços, para fazer como travesseiros pequenos. Costure as laterais, deixando um lado aberto, para preencher com os miúdos temperados até a encher.
6. Costure a parte aberta para que o recheio não vaze.
7. Corte pequenos pedaços do restante do bucho, amarre com a tripa, fazendo várias voltas ao redor deste bucho, para que o mesmo não se solte. Reserve.
8. No fundo de uma panela, arrume os travesseirinhos de bucho.
9. Adicione o restante do colorau, do cominho, da pimenta-do-reino, sal a gosto e a reserva preparada de tomate, pimentão, cebola, coentro, hortelã e alho.
10. Em seguida, na panela que contém a buchada, coloque as trouxinhas envoltas em tripa, regue com azeite e adicione água em temperatura ambiente até cobrir por completo os travesseirinhos.
11. Deixe cozinhar por uma hora em fogo baixo.
Tacacá – a colonização do sabor brasileiro
Quando falamos da chegada dos portugueses em terras brasileiras, também chamada de Pindorama pelos indígenas, a contribuição gastronômica dos povos que ali moravam é disputada. O contato dos colonizadores em sua maioria era de dominação e violência, quanto aos hábitos alimentares não foi uma relação diferente. Assim, a participação indígena na formação da culinária brasileira foi mais passiva do que ativa. Suas técnicas, ervas, vegetais, frutas, foram utilizados pelos portugueses em uma ação de incorporação. Portanto, os modos de comer, fazer farinha e as muitas utilidades da mandioca se assimilaram ao paladar dos europeus no Brasil.
Essa influência indígena na culinária durante o período colonial até os dias de hoje pode ser expressa através do tacacá. Segundo o antropólogo Câmara Cascudo, o prato comum na região Norte do país, remete à uma sopa indígena chamada mani poi. Conforme o relato de exploradores, pesquisadores e viajantes durante a época colonial, era comum no contato com indígenas eles serem recebidos com um caldo com tucupi, goma de mandioca, jambu, pimentas e às vezes camarão. É essa mistura que compõe o que chamamos de tacacá.
Vamos ver como preparar essa receita centenária? (Receita do jornal Folha de São Paulo)
Receita de Tacacá
Ingredientes:
2 xícaras de tucupi
1 dente de alho
1 colher (café) de sal
1 pimenta-de-cheiro do Pará cortada ao meio
1/4 maço de jambu sem os talos grossos
4 camarões secos
30g de goma (tapioca com água)
300ml de água
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Modo de preparo:
1. Coloque o tucupi em uma panela e o deixe ferver por 15 minutos.
2. Coloque o alho, a chicória, o jambu, o sal e a pimenta na mesma panela. Cozinhe por cinco minutos. Após esse tempo, o jambu deve estar macio.
3. Em outra panela, dissolva a goma na água com o fogo ligado até ficar transparente.
4. Ferva os camarões secos em uma panela a parte.
5. Em tigelas adequadas, coloque a goma até um terço do recipiente e complemente o restante com o caldo temperado do tucupi e as folhas de jambu. Coloque ao final um camarão para cada porção.
Sobre o Autor:
Gabriel Rabello é cientista social e possui mestrado em Sociologia, ambos pela Universidade Federal Fluminense